“O cuidado que se deve ter hoje em dia em relação ao sistema de justiça criminal dos Estados de direito é ser coerente com seus próprios princípios ‘garantistas’: princípios de limitação da intervenção penal, de igualdade, de respeito ao direito das vítimas, dos imputados e dos condenados. Trata-se, mais do que tudo, de aplicar e transformar o direito substancial (fundamental), processual e penitenciário em conformidade com aqueles princípios, por todo o tempo em que deve durar a luta por uma política ‘alternativa’ com relação à atual política penal. Refiro-me à luta civil e cultural pela organização da tutela pública dos interesses dos indivíduos e da comunidade, da defesa dos direitos dos mais fracos contra a prepotência dos mais fortes, com formas mais diferenciadas, justas e eficazes (instrumentais) que aquelas simbólicas oferecidas pelo sistema de justiça criminal”1.
1. A atividade jurisdicional reserva ao juiz – e tão somente a ele – a prolação sentença como ato derradeiro da instância e como o mais importante de qualquer sistema processual. No juízo penal, especificamente, com o encerramento da instrução, surgem alternativas à prolação da sentença, prorrogando (na mutatio libelli) ou não (na emendatio libelli) o momento da decisão. Na primeira hipótese, que interessa ao tema, tem-se o restabelecimento da movimentação procedimental anterior ao momento da decisão.
Já havia manifestado em artigo anterior preocupação com o Art. 384, do Código de Processo Penal, em face de sua redação original2, que, mesmo marcado por flagrante inconstitucionalidade, era aplicado por maioria esmagadora dos magistrados do país, raramente criticado na doutrina e apoiado pela jurisprudência dos tribunais, inclusive nas instâncias superiores.
Com a reforma no sistema processual penal promovida pela Lei 11.719/08, a respeito da mutatio libelli, o dispositivo em espécie passou a ter a seguinte redação:
Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente.
§ 1o Não procedendo o órgão do Ministério Público ao aditamento, aplica-se o art. 28 deste Código.
§ 2o Ouvido o defensor do acusado no prazo de 5 (cinco) dias e admitido o aditamento, o juiz, a requerimento de qualquer das partes, designará dia e hora para continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de debates e julgamento.
§ 3o Aplicam-se as disposições dos §§ 1o e 2o do art. 383 ao caput deste artigo.
§ 4o Havendo aditamento, cada parte poderá arrolar até 3 (três) testemunhas, no prazo de 5 (cinco) dias, ficando o juiz, na sentença, adstrito aos termos do aditamento.
§ 5o Não recebido o aditamento, o processo prosseguirá.
Inegável o avanço do CPP em direção ao sistema acusatório aproximando-se do que fora consagrado na Constituição de 1988. Mas, como se verá, mantido está o embaraço que evitou alcançar o ideal constitucional.
A primeira e mais importante providência do legislador foi afastar o juiz da iniciativa acusatória, reservando ao Ministério Público, o que já era legítima e constitucionalmente consagrado (mas nem sempre respeitado), pois é sua função institucional promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei (Constituição Federal, Art. 129, inc.I).
Nada mais hostilizava tanto a qualidade ou eficácia jurídica do antigo texto, que a atuação que ali era imposta ao magistrado. É que, se o juiz reconhecesse “a possibilidade de nova definição jurídica do fato..." e tomasse a providência contemplada na norma, despia-se de sua neutralidade / imparcialidade para dar eficácia à essas usurpantes providências; Renunciava às suas virtudes institucionais pois incumbia a ele, no momento derradeiro e mais importante da prestação jurisdicional, deixar de sentenciar para tomar providências que constituíam atribuição exclusiva do Ministério Público. Tornava-se um verdadeiro Promotor ‘B’.
Uma das mais caras conquistas de qualquer sistema juridicamente legítimo passa pelo irrestrito respeito ao princípio ne procedat judex extra petita.
A marca do sistema acusatório consagrado na Constituição de 1988 promove a imparcialidade do juiz como sendo fundamental à lisura do procedimento, garantia que é da própria sociedade, interessada em um julgamento justo e que seus membros estejam à mercê do processo penal. Constitucionalizado.
Ora, o Estado Democrático de Direito, delineado no Estatuto político vigente, confere sua representação acusatória ao órgão ministerial, cercando-lhe com o direito subjetivo de ação ou de exigir a tutela da jurisdição, que não pode ser revogada, nem substituída pelo magistrado, titular da tão nobre atividade jurisdicional.
Neste tanto, o legislador aproximou-se do ideal constitucional.
2. Além de retirar do juiz a iniciativa acusatória de acionar a defesa ou provocar o movimento do Ministério Público, devolvendo a este a exclusiva atribuição de promover o devido conserto da acusação, a novidade legislativa cuidou de evitar a discrepância de prazos para apresentar o aditamento e eliminando, definitivamente, o tratamento diferenciado pelo apenamento que dirigia a criticada atuação do julgador3.
Daí o alerta de Giacomolli ao assentar que a “... nova definição jurídica do fato há de ser feita, voluntariamente, pelo sujeito a quem se atribui a função de acusar (art. 384) independentemente de provocação do sujeito encarregado de julgar (magistrado) sob pena de indevida interferência funcional, antecipação do juízo condenatório, quebra do due process of law e do principio acusatório, em prejuízo da defesa.”4
O entendimento é compartilhado por Lopes Jr., ao assinalar que “...com o advento da Lei 11.719/08, houve uma profunda modificação na sistemática do art. 384 CPP, especialmente na correção de um erro histórico que atribuía ao juiz a invocação do Ministério Público. Agora, corrigida esta falha, incumbe exclusivamente ao acusador proceder a mutatio libelli, em que pese a previsão contida no §1º, de que o juiz poderá aplicar o art. 28 enviando o feito ao procurador geral caso o promotor fique inerte. (p. 390) .... A iniciativa é exclusiva do Ministério Público,... (p. 392). Em relação ao sistema anterior andou bem o legislador ao retirar do juiz a iniciativa de invocar o acusador para fazer o aditamento.”5
O juiz renunciava às suas virtudes institucionais - imparcialidade, independência, etc - pois incumbia a ele, no momento derradeiro e mais importante da prestação jurisdicional, deixar de sentenciar para tomar providências que constituem, repete-se, atribuição exclusiva do parquet.
Expungida foi do sistema aquela disparidade com a concessão de prazo único – cinco dias – para a ação ministerial, se não aditada oralmente na própria audiência, a acusação, quando apresentar-se na instrução elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação.
3. Esclarece Pacelli de Oliveira, que na mutatio libelli “não há a substituição da acusação, mas a adição a ela de um fato ou circunstância agregado àquele (fato) principal já imputado, não haverá renovação integral da instrução e nem mesmo modificação da interrupção da prescrição. É dizer, na mutatio não há nova ação, mas aproveitamento daquela já instaurada, em razão de provas surgidas apenas na fase de instrução”6.
Mas interessante observar, que, mesmo não se tratando de nova ação, se restabelece, em prazo menor, a postura procedimental imposta pela Lei 11.719/08: “Ouvido o defensor do acusado no prazo de 5 (cinco) dias (originalmente dez dias) e admitido o aditamento, o juiz, a requerimento de qualquer das partes, designará dia e hora para continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de debates e julgamento”.
O texto legal autoriza ao Ministério Público, diferentemente do que ocorria no sistema anterior, a produzir provas, o que, por interpretação logocentrista e excludente, era reservada à defesa por omitir a norma referência ao órgão acusador. Justificava-se a causa da alteração do libelo em face de que a inédita ‘circunstância elementar’ estava provada nos autos e, com isso, desnecessária nova oportunidade informativa para sustentar a acusação. Por outro lado, ao dar a oportunidade probatória apenas à parte defensiva, o magistrado estaria convencido de que, se não houvesse alteração pela instrução unilateral, o réu estava condenado, expondo situação alarmante e desproporcional dentro do processo em desfavor do acusado.
Equilibra-se o prazo para as partes arrolar testemunhas (cinco dias), eliminando a diferença do antigo Art. 384 em seu parágrafo único.
Assim, criada está a possibilidade de as partes trazerem prova que, por seu ineditismo processual (por óbvio, não se repete a prova já produzida), possa ser derribada via contraprova, que, sabidamente, anima o princípio do contraditório, constitucionalizando o processo penal democrático.
4. Não descurou o legislador de assegurar alguns benefícios que a nova capitulação possa autorizar (Art. 384, § 3º, CPP) como, por exemplo, o sursis processual (parágrafo 2º). No mesmo sentido, esteve atento à questão da competência e seu eventual deslocamento para um juízo legitimado (parágrafo 3º do Art. 383).
5. Pela lei reformadora, o juiz ficará, “... na sentença, adstrito aos termos do aditamento” (4º) e se “não recebido o aditamento, o processo prosseguirá” (§ 5º).
A respeito lê-se na doutrina que: "... Obviedades foram inseridas no art. 384, tais como se houver aditamento, o juiz ficará adstrito, na sentença, aos termos do referido aditamento ou não recebido o aditamento, o processo prosseguirá (art. 384, §§ 4º e 5º CPP) não havia necessidade de se expor a consequência natural dos atos processuais antecedentes (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 5ª ed. 2009. p. 665).
Primeiro, não poderia ser diferente o resultado do não recebimento do aditamento, se não pelo prosseguimento com a presença da original imputação.
6. Todavia, inaceitável é a reação doutrinária em torno da distância que deve o juiz manter-se de qualquer iniciativa acusatória, admitindo alguns doutos que o juiz “: "... deve abrir vista ao Ministério Publico para que promova o aditamento da peça acusatória” ou “...ao deparar-se com a possibilidade de aditamento da peça acusatória, o magistrado deve baixar o processo em despacho prolatado em termos sóbrios sem qualquer tipo de prejulgamento ou frases, taxativas, indicando que ira julgar de determinada forma. (Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 5ª ed. 2009, p. p. 664 e 666).
Ora, assim admitir significaria mudar para que fique como está, contrariando a vocação do texto legislativo pelo sistema acusatório.
As lições citadas interpretam a norma atual no mesmo sentido que imposto pelo parágrafo único do Art. 384 em sua redação anterior à reforma de 20087.
O texto legal da reforma oferece oportunidade para resgate da verdadeira e mais digna magistratura, restando penas exercer com coragem a jurisdição constitucional e, ainda, confiar que o Ministério Público cumpra com seu importante papel como órgão essencial à Justiça.
Por Aramis Nassif.
1 ”: BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal. Lineamentos de uma teoria do bem jurídico, p. 24.
2 “Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de oito dias, fale e, se quiser, produza prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas.
Parágrafo único - Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, abrindo-se em seguida, o prazo de três dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três testemunhas”.
3 Na legislação revogada, para a situação menos grave (Art. 384, caput, CPP), o prazo seria de oito (8) dias e, para a mais gravosa (Art. 384, § único, CPP), o prazo reduzir-se-ia a três (3) dias.
4 GIACOMOLLI. Nereu. Reformas (?) Do Processo Penal Considerações Criticas, 2009, Lúmen Júris, p.108
5 LOPES JR, Aury Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional Volume II, 2ª ed. 2009.
6 OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal, Lúmen Júris Editora, 2009, p. 531.
7 Ou seja, o juiz não seria mais um Promotor de Justiça substituto mas, sim, uma espécie de assessor do agente ministerial, cuidando para que ele não se omita em relação ao novo desenho fático imposto pela instrução.
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